Opinião

Dicotomia à portuguesa

O cenário político em Portugal oferece-nos durante estes dias um enredo, no mínimo, intrigante. Alguém que se demitiu recentemente do cargo de Primeiro-Ministro devido a investigações sobre o seu governo e que, até agora, não resultaram em nada a não ser a queda do próprio Governo, surge com força nos bastidores europeus e é apontado como possível Presidente do Conselho Europeu.

 

A ironia parece-me evidente. De um lado, temos um líder político que, em face de suspeitas não comprovadas, abdicou do comando nacional. Do outro, a mesma figura é celebrada como potencial líder no cenário europeu, numa demonstração de confiança e prestígio.

 

Acho que esta dicotomia levanta questões profundas sobre a nossa democracia e os mecanismos de escrutínio.

 

Que democracia é essa que, num momento, não questiona veementemente o que levou à queda de um governo eleito, e noutro, festeja com entusiasmo uma possível eleição europeia do mesmo político?

 

Isso não é uma avaliação à pessoa ou até às suas comprovadas capacidades e qualidades no contexto europeu. É antes uma autoavaliação sobre a forma como estamos a olhar para estes sucessivos e consequentes acontecimentos.

 

O caso de António Costa (e não só) deve obrigar-nos a refletir sobre a seriedade com que encaramos investigações e o valor que atribuímos à integridade das suas lideranças. É uma oportunidade para questionarmos e exigirmos transparência para reforçarmos a confiança nas instituições democráticas. Uma democracia saudável não se constrói apenas com vitórias, constrói-se com a capacidade de enfrentar, com rigor e justiça, as adversidades que ela enfrenta.

 

(Crónica escrita para Rádio)